20 de jan. de 2005


Um dedinho.
(História Baseada em fatos reais que não aconteceram comigo)

Nem percebi quando a moto bateu em meu carro. Estava atravessando a pista, já tinha atravessado até, quando senti o "tum". Olhei pro lado e vi algo que se arrastava no asfalto e fazia faíscas. Saí correndo do carro. Um rapazinho se levantou enquanto a garota que estava na garupa ficou deitada no chão chorando. Estão todos vivos! Realmente, aparentemente, fisicamente, estávamos todos razoavelmente bem.
O menino, o piloto descuidado -ou seria eu o descuidado?- já de pé, estava falando alto, devia ter uns 18 anos. Espinhas na cara e sangue no cotovelo. Eu só olhava pra ela. A menina de calça bege e blusa rosa ainda gritava. A cara dela estava tão distorcida por causa do choro forte escondido atrás do capacete, que não sabia dizer sua idade. Quem estava errado? Chame o resgate primeiro, chame o resgate! Resgate chegou em menos de 4 minutos. Realmente não sei de onde veio tanta eficiência. Na hora em que viraram a moto, que era roxa metalizada, eu vi que o dedinho do pé da garota estava sangrando. Só o dedinho do pé. Um dedinho não mata ninguém. Alguém já morreu por causa do dedo mais inútil do nosso corpo?
A menina continuou gritando, e gritando e berrava enquanto gritava. Tudo isso por causa do dedinho? Talvez não fosse apenas o dedinho. Talvez tenha "pego" algum nervo, algum tendão, alguma unha que estava encravada, o que poderia gerar uma infecção, seguida ou de amputação ou septecemia. Aí eu poderia dizer "Já matei alguém". Como? "O dedinho do pé".
Ela estava usando um chinelinho preto, desses vagabundos. Mas por que diabos uma pessoa anda de moto com um chinelo? Ou de bermuda? Ou camiseta regata? Por que eles, os motociclistas e seus garupas, não andam mais "cobertos"? O asfalto queima, arranca pedaço, estraçalha, esfacela. Que aflição.
O garoto veio falar comigo enquanto atendiam a irmã dele. Descobri que era irmã quando ele falou com o enfermeiro. Nervoso, tremendo, com a camiseta rasgada, mancando de uma perna - Podia ser tudo cena? Não devo pensar assim, não devo -me pediu um cigarro. Olhando para os meus olhos, ele disse "Eu não te vi cara". Não tinha jeito, nem trejeito, nem nada de aproveitador. Era só um menino. E eu, muito assustado, olhava para a garota sentada no meio fio chorando enquanto os paramédicos examinavam seu dedinho.
Carros passavam, olhavam, até um conhecido meu passou e me gritou um "aí barbeiro!" com toda classe e elegância que só um retardado que come merda poderia ter. Mandei-lhe um sinal obceno.
Chega a polícia, e eu estranhamente sei que sempre odiei autoridades. Desde o diretor da minha escola de 1º Grau até o síndico do prédio. Odeio. O policial cheirava a sabão em pó. Omo Dupla Ação? Minerva? A bandeira o Estado de São Paulo parecia gasta na manga esquerda de seu uniforme. A senhora, dona patroa, estava esfregando demais. A menina e seu dedinho sangrante agora já estavam na maca. Eu acendo meu 5º cigarro em 20 minutos.
"Seu guarda, seu guarda". Lembro do Manda Chuva. Guarda Belo. Eu não sou um gato vagabundo, apesar de me identificar com aquele Batatinha.
Anota tudo em sua pranchetinha. Números, números, registros, documentos. Olha meu carro, olha a moto. Anota mais coisas. E me pergunta o que houve. "Olha seu guarda, eu nem percebi quando a moto bateu no meu carro". Eu tentei me explicar. Não sei como. Ela estava pra lá, depois estava aqui. E o dedinho da menina quase fica perdido no caminho.
Eu falo, tu explicas, ele revida. Vós rebateis, nós discordamos, eles questionam. É hora de ir para a delegacia. B.O, perícia. Olhei para o relógio e me lembrei que estava com muita fome antes de tudo aquilo acontecer. Eu estava indo comer alguma porcaria, e por causa de um dedinho, seja o dedinho do "um pouquinho" mesmo, o dedinho do destino, ou do dedinho da mocinha de chinelo, eu tava me sentindo muito fudido.
Olha, ainda bem que eu não tive que passar minha digitais. Não ia aguentar o datiloscopista pedir "Coloca o dedinho aqui". Ou chegar em casa e minha esposa pedir "Coloca o dedinho aqui". Ou até ligar a TV e aparecer a Eliana contando seus dedinhos. Eu iria mostrar meu dedinho para todo mundo.