Entro na sala um pouco atrasada. Não foi fácil chegar aqui. Tive que matar 3 bodes e desenhar pentágonos pelo chão. Nunca fui boa em desenho geométrico. Mas, enfim, posso começar minha entrevista.
Nada de corpos pustulentos pendurados na parede, câmaras de tortura, lava borbulhante. Não ouço gritos de dor. Na verdade não ouço nada. Só o barulho do ar condicionado. O tapete felpudo vermelho me faz espirrar. Na parede, apenas uma cruz pendurada de ponta cabeça. Cravejada de cristais swarovsky. Um sofá forrado de seda preta com almofadas bordadas está no meio do lugar. Eu me sento e espero Ele entrar.
Uma fina névoa púrpura se forma no canto esquerdo da sala. Lá está, o mal em pessoa. Terno risca de giz acinturado, um lenço roxo amarrado no pescoço. Chapéu fedora, de lado. Saltos altos, de verniz vermelho. Grandes negros olhos e brilhantes. Com sombra e rímel.
- Olá minha criança! Como foi a viagem até aqui?
- Ah, olá ... Foi meio complicada, mas foi bem, obrigada.
- Notei que não há sangue em suas roupas, parabéns. Aparece cada coisa aqui que você não imagina.É dificil matar bodes sem espirrar na roupa. Você deve ser profissional.
- Ah, mais difícil do que matar foi aguentar o cheiro, eles fedem.
- Ai nem me diga. Terrível! Mas queridinha, vamos começar? Por quê está aqui? Pelo mesmo motivo que todo mundo?
- Não, é uma entrevista...
- Como minha cabeça está ruim! Minha secretária me avisou, mas são tantos afazeres que acabei esquecendo. Isso aqui está lotado e tem cada vez mais gente aparecendo para me encher o saco. Povinho decadente...
- Posso começar a entrevista?
- Oh pode sim, deixe eu servir alguma coisa... Champagne?
- Sim, pode ser.
- Ai bem, esse negócio de vinho não é comigo. Dá dor de cabeça e me lembra o sangue daquele hippie infeliz.
Ligo o gravador. Ele senta-se ao meu lado, cruza as pernas com muita delicadeza. Não posso deixar de comentar:
- Seus sapatos são incríveis!
- Obrigada gracinha!
- Como devo chamá-Lo? Sempre tive dúvidas. Tem algum nome favorito dentre tantos que te deram?
- Olha isso acaba comigo. Me deixa louco. Tantos nomes, e convenhamos, alguns tenebrosos até pra mim. Olha, quem me chama de belzebu eu finjo que nem é comigo. Parece nome de botina de roceiro. Eca. Os brasileiros "have the nerve" de me chamar de "tinhoso". Ai que povinho ridículo.
- Pois como devo chamá-lo?
- Gino. Adoro esse lance italiano.
- Gino, você é um pouco diferente do que eu imaginava...
- Eu sei fofa. Todo mundo acha que vai encontrar um fisiculturista vermelho de três metros de altura, com rabo, chifres e toda aquela parafernália de tortura. Mas veja bem, minha intenção não é assustar ninguém. O medo não convence ninguém de nada, capisce?
- Imagino que sim. Mas explique isso melhor.
- Todo aquele lance "nas entranhas do inferno", esfolar gente viva, queimar sua carne eternamente, sangue, tripas, melecas "everywhere" não é para mim.
- Então, como é seu purgatório?
- Deserto minha nega. É um desertão assim, tipo a caatinga sabe? Não tem nada pra fazer lá. Aqui tá cheio de gente interessante, por isso eu dividi a categoria. Os chatinhos mongolóides ficam ali no deserto, comendo areia, mijando areia, cagando areia. Pronto. Os mais interessantes ficam no clubinho. "In tha'club"
- Clubinho?
- Assim, que graça tem prometer mundos e fundos, pedir para os homens colaborarem com a minha causa se quando eles chegarem aqui vão ficar chateados comigo? Poxa, eles fizeram tanto por mim, tenho que retribuir. O Diabo aqui não é injusto. Sou cruel, mas sou justo.
- Que gente bacana está no "tha'club"?
- Só tem gente fofa. Imperadores, artistas, políticos, alguns serial killers... Gente importante e com conteúdo.
- Quem está aqui eu eu achava que não estava?
- Como chama aquele rapazinho... John Kennedy.
- Ah?
- Mas ele está lá no deserto com os chatinhos, não gosto dele.
- Por quê?
- Ele é um porre! Não consigo conversar cinco minutos. E tem mais: Ninguém chifra a chiquérrima Jackie. Ninguém, isso é imperdoável. Nem com a Marylin. Que aliás, está cantando hoje no bar do clube, lindona. Eu desenhei o modelito, tem umas plumas assim...
- Gino, voltando ao assunto: Quem não está aqui e todo mundo acha que está?
- Adolfinho.
- Hã?
- Longa história meu bem. A biba sabe tirar o corpo fora, isso é tudo que eu digo.
- Mas o inferno ao meu ver era pior.
- Olha, o céu pode até ser mais bem localizado... But no fun at all...
- Diversão?
- Ai é tudo tão claro quéeerida! Claro como uma taça swarovsky. Here's the deal: Gente boazinha é trash. Sob todos os aspectos. Se vestem mal, comem mal, ouvem música ruim, um blergh total. Tento mostrar a vida boa, mas eles querem ficar ajoelhados olhando pro nada...(cruza as pernas e acende um cigarro)
- Seus sapatos... Sempre usa salto?
- Versace moreco. Eu pessoalmente acho Prada um pouco "senhoura" demais sabe? Salto é poder, chinelinho é coisa de pobre. Tipo assim, olhe para mim. Agora olhe para uma beata, uma crente. O que são aqueles cabelos? O que são aqueles cabeeeelossss? Terrible. E tenho uma palavra para você queridinha: Jérsey. Quer me manter longe? Jérsey florido faz o trabalho. Muito pior que exorcismo. Jérsey florido é exorcismo automático! (risos escandalosos).
- É se vestem mal... Mas isso faz delas pessoas idiotas?
- Elas compram sapatos em saldão! Socorroo! O que falar mais destas pessoas? Compram sapato em saldão e gostam do barbudinho seboso.
- É suspeito mesmo.
- Sapatos de corino e gente de batinha branca! Isso não pode! Não, no, non mon cherie! (se serve de mais champagne)
- Hoje é o seu dia. Seis, seis, seis. O dia da Besta.
- Besta? BESTA?
- Não, calma, desculpe Gino.
- Esses nomes ainda vão acabar comigo...
- Hoje é o seu dia! Como se sente?
- Tristinho. E eu digo porquê. Vocês me tratam muito mal. Até os que supostamente gostam de mim. Essas músicas de mau-gosto. Insistem em me chamar de Besta. Os tais satanistas são uns ridículos. Cabelos desgrenhados, roupas pretas e fedidas, coturnos, malditos sejam os coturnos! Aparecem aqui com aquelas maquiagens mal-feitas, delineador borrado. O look heroin chic já era! Chegam aqui me chamando de mestre, eu falo "pare de comprar roupa no Wal Mart amor" mas eles não ouvem.
- Mas eles gostam de você!
- Ah vá! Acendem um monte de vela preta, ouvem músicas cavernosas e me chamam pra festa. sabe quando eu apareço? Nunca. Nunquinha.
- Então você não gosta de satanistas?
- Eles fazem tudo errado. Eu sei que isso é provação. É o meu castigo.
- Castigo? Pelo o que fez com Deus?
- O que eu fiz? Oh! Eu fiz o que fiz porque tudo era chato. Resolvi redecorar lá em cima, gastei cartão de crédito do papi, brigava com aqueles tontos o tempo todo. Eu queria sair, ver o mundo, brilhar, brilhar, brilhar! Eles me seguravam, não respeitavam minha escolha. Eu tinha que usar branco! O tempo todo! Me tiraram de casa. Eu sou aquele tipo de pessoa que tem que segurar o perucão sabe? Subi no salto e saí andando, pra nunca mais voltar. Aí papai fez aquele Hippie, barbudo e de chinelos. O look mais piegas que papis pode conceber. E eu sei que foi pra me irritar.
- Não duvido. Tem alguma coisa que fizeram para você lá na Terra que você considera válida?
- Uma meia dúzia de livros, umas quatro musiquinhas e umas frases pra camiseta. Tem uma da Dolce Gabanna que eu piro: está escrito "Devil" na frente e "Lived" atrás, tudo bordado em brilhantes. Lindo!
- Eu digo a humanidade.O que a humanidade fez que você adorou?
- Ah sim. Deixa eu ver... A luxúria eu diria. É o pecado que leva a todos os outros. Pode ter certeza.
- Uma música para encerrar a entrevista. Qual a sua favorita?
- Simpathy for the Devil é fofa, mas eu devo dizer "Strange Fruit" da Billie Holiday. É classuda e cruel. Just like me!
- Gino, obrigada pelas respostas, mas meu tempo acabou.
- Ah, eu sempre me esqueço. Obrigada você pela visita fofinha. Da próxima vez, esqueça os bodes e os pentágonos. Compre uma bolsa Chanel, me ofereça champagne decente, chame meu nome que eu apareço tá?
- Tá bem.
- Beijinho.