Na rua em que eu morei durante grande parte de minha vida vivia um homem chamado Jales. Eu o via todos os dias, andando sem camisa entrando em terrenos cheios de mato, cercado por cães e gatos de rua. Ele tinha a pele queimada cor de jambo, com aparência de couro, contrastando com seus cabelos brancos. Seus dentes, os poucos que restavam, eram podres; muito magro com as costelas aparentes, era praticamente um indigente.
Todos os dias, altas horas da noite, Jales descia a rua carregando sacos de lixo, que ele levava para dentro de sua casa. A residência destoava completamente das outras: bairro classe média-alta era repleto de casas de bom tamanho, bem cuidadas com jardins e portões de grade. A casa de Jales era apenas um muro alto, com portão apodrecido de madeira fechado por uma corrente enferrujada. Não dava para ver o que tinha atrás daquele portão. A sua calçada nada mais era do que caminho de folhas e pedregulhos. Plantada ali, uma árvore Chapéu-de-Sol com mais de 10m de altura era o buffet noturno de dezenas de morcegos.
Além do hábito inverso de trazer lixo pra casa, por várias vezes eu o via andar pelas ruas do bairro, segurando baldes cheios de sementes, sacolas de plástico, pás, pincéis e tinta. Ele "decorava"a vizinhança. Plantava flores, pendurava garrafas em varais de barbante como se fossem cortinas de vidro e pintava postes e meio-fios com azul, verde, branco e amarelo. Certas vezes eu via Jales vestido com roupas sociais e usando sapatos, cabelo cheio de gel penteado para trás. Ficava me perguntando para onde ele ia.
A molecada da rua tinha um certo medo dele, por motivos óbvios. Inventávamos histórias, fazíamos piadas sobre seu estilo de vida. Mas nunca lhe dirigíamos a palavra. Quando brincávamos e Jales passava arrastando os chinelos gastos, exibindo o tronco esquálido e desnudo, fingíamos que não estava lá. Não queríamos arranjar confusão. Mas Jales arranjava as suas: ele odiava seu vizinho lateral. Gritava palavrões, jogava coisas, cuspia. O ódio justificava-se por uma única janela: vizinho tinha uma janela no segundo andar que dava direto para a casa de Jales. E Jales não suportava que alguém visse como era sua casa. A não ser que fosse convidado.
Acabei ficando amiga da filha do vizinho odiado por Jales. Ela era mais nova do que eu, não tínhamos nada em comum (aos 13 anos eu já havia deixado as bonecas - e ela ainda brincava com bonecas). Mas eu queria muito olhar pela janela. Queria ver como vivia Jales, qual era seu segredo. Um dia a menina me chamou para ir até a casa dela brincar. Peguei algumas bonecas que estavam enfiadas em uma caixa e corri para lá. Finalmente eu poderia ver o que havia atrás do portão. Subi as escadas e notei algo estranho na sala. A janela que despertava minha curiosidade estava tampada com uma placa de madeira. Escondi minha frustração e fui brincar com a garota. Enquanto fingia interesse por vestir fraldas em ursos, eu perguntava a ela sobre Jales. Ela disse que não sabia muito. O irmão dela, que tinha a mesma idade que eu, entrou no quarto. E ouvindo que falávamos sobre Jales, ele me contou sua história.
Jales havia sido um homem normal. De família próspera, ele possuía uma revendedora de veículos. Bem sucedido, estava para se casar quando contraiu meningite e acabou meses internado em um hospital, muito doente. Eventualmente conseguiu se curar - o corpo ao menos, pois havia ficado completamente louco. A doença lhe causou uma série de paranóias e fobias. A família percebeu que ele já não podia mais tomar conta da loja de carros, sua noiva o abandonou e Jales foi morar em um terreno que pertencia a ele. Um terreno com um casebre no meio - provavelmente um resquício do que um dia havia sido uma fazenda inteira. Jales foi viver ali, sozinho, e construiu em torno de si a maior paranóia de sua vida.
Depois de ouvir a história, minha curiosidade ficou maior. Eu precisava ver o terreno. Pedi, quase implorando, para ver. O menino ficou meio encabulado, disse que a madeira estava lá para evitar problemas. Choraminguei que seria por apenas um minuto, que Jales nem iria perceber. Fomos então os três para a sala. O garoto levantou a madeira e a colocou de lado. Eu me aproximei e senti um cheiro horrível. O que vi, nunca mais vou esquecer.
Um casebre de alvenaria estava cercado por montanhas de lixo. Montanhas separadas por "tipo": jornais, caixas, garrafas plásticas. Logo observei vários baldes quebrados, alguns cheios de pássaros mortos. A lenda se tornava real. Um caminho de árvores cheias de papel enrolado levava da casinha até o portão da casa. O garoto ao meu lado me disse para prestar atenção no grande amontoado de jornais embaixo de uma barraca de madeira podre. Pude perceber: os papéis úmidos e embolorados escondiam um carro. Um carro branco. Tudo que havia sobrado do homem antes da doença foi um carro zero de sua revendedora, que ele guardava embrulhado em jornal.
De seis em seis meses um caminhão da prefeitura passou a visitar Jales. Homens vestindo máscaras e roupas alaranjadas retiravam pilhas de lixo e jogavam no caminhão. Às vezes, uma viagem não era suficiente para tirar tudo. Eu via, de minha sacada, Jales observando os homens levarem seu tesouro, inconformado. Nesses dias ele berrava a noite inteira, gritos que a rua toda ouvia. Não entendia bem o que ele berrava, era uma mistura de palavrões e lamentos. Jales não era preso, nem multado. Acabei descobrindo que sua mãe, bem idosa, o sustentava como podia. Quando via Jales limpo e vestido era quando ele ia até o centro visitá-la.
O tempo foi passando e Jales saía cada vez menos de casa. Às vezes ele sumia e eu pensava em chamar os bombeiros. Imaginava que ele podia ter morrido picado por escorpiões (que eram muitos no bairro) ou de doença. Mas logo ele aparecia de madugada, arrastando grandes sacos pretos pela calçada. E de certa forma eu me acalmava.
Contei essa história porque acabei de assistir um documentário chamado Grey Gardens, de 1975 e me veio a lembrança. O filme mostra a vida de uma velha socialite falida e sua filha solteirona vivendo em uma mansão decrépita nos EUA. Pobres, famintas e mentalmente afetadas, as duas criam um mundo imaginário no meio do lixo, gatos e pulgas onde tudo parece estar normal. Na época o documentário tornou-se um escândalo já que as duas eram parentes de Jackie Onassis - que logo depois da repercussão, mandou reformar a casa e cuidou das duas. Quem quiser assistir (em inglês, sem legendas) tem inteiro do youtube.
Ideal pra quem adora questionar a racionalidade e a loucura humana.